- Espere eu acabar de fumar.
- Mas você não estava parando?
- Isso pouco importa.
Saio de perto, chego até o janelão aberto. Olho para os lados, o Júlio não está mais me observando. Acabo o cigarro acendendo outro. O fato é que acender mais um cigarro foi a forma de enrolar para ficar mais um pouco. Pelo menos cinco minutos. Parece que o Júlio ficou preso na conversa sobre games antigos com a Carlota. Não tem uma vez que os dois se encontram que não começam a falar de super-nomes que super-não-entendo. Agora ela foi buscar algum jogo no quarto e já sei que vamos ficar mais algumas horas. Descanso os braços na janela e só fumo. O trólebus passa, deve ser o último da madrugada.
A Carlota volta para a sala com um jogo de tabuleiro nas mãos. O gestual chama todo mundo para a brincadeira. Eu continuo na janela. O gato marrom se esfrega na minha perna. Do lado de lá, os cinco começam a jogar, do lado de cá, fico com o gato e o Luís.
O tabuleiro na mesa, o piso de lajotas do corredor, perspectivas. Um tipo de tabuleiro no chão. Ou será espelhamento do pôster do Escher? Me sento no almofadão amarelo. No fim do corredor, o vidro do armário. Reflexos meus ali? Alguém grita um número, meu olhar caminha as casas-lajotas. O Luís pesca o que estou fazendo e se aproxima. O jogo de cá começa.
Nos posicionamos no início do tabuleiro. Nós três. O gato dá o primeiro passo. Alguém grita, cinco! e o Luís caminha cinco lajotas. Lanço uma bituca como alguém que lança um giz. Salto como quem salta passos ao céu. O Miau avança mais três casas. Seguimos assim, do janelão ao início do corredor, seguindo estímulos que se apresentam como regras. A Carlota nos dá um dos dados do War:
- Quem de vocês vai conquistar o mundo?
O Júlio acende um cigarro e coloca na minha boca:
- Agora você tem que fumar sem tirar o cigarro da boca.
Todo mundo ri. É assim que ele sempre cala um comentário ranzinza. Respondo mordendo a ponta do cigarro:
- Mas é a mesma estratégia, desde 1985!
Trago e alguém comenta:
- O mesmo Júlio conquistando o mundo.
Me concentro. Espero o gato avançar o tabuleiro-corredor. Outro trago sem soltar o cigarro. A fumaça resseca os olhos, arde as narinas. Mais um trago e caminho bem devagar equilibrando as cinzas. Sigo como quem escreve três histórias que se cruzam. A primeira é sobre quem chega primeiro no fundo do corredor, a segunda é sobre fumar sem tirar o cigarro da boca e a última, saltar casas sem quebrar as cinzas do cigarro. Se movimentar com peso, as cinzas desmancham do ar ao chão, do céu ao inferno. Escrever é isso? Estamos no meio do corredor, a tal cinza cai. O gato desiste do jogo, bebe água, o Luís, com o dado, canta os números:
- Seis! Agora eu te passei...
- Um...
Avanço uma casa e o Luís tira mais seis. O Miau me ajuda se postando bem na frente do Luís. Agora vai precisar desviar do gato. Tiro seis e não sei mais o que estou escrevendo. Sinto o cheiro do café que a Amanda passou. Apago o cigarro na sola do meu sapato. O Luís encerra o jogo, arruma os cabelos quando se vê no vidrinho da porta do armário. Um grito na sala:
- O Marcio conquistou América do Norte e Oceania.
Podemos ir embora. Ou quem sabe, lançar a sorte, recolher personagens que apareceram no tabuleiro, escovar os pelos do gato e por fim, começar a escrever um livro.