memórias impregnadas antes das lajotas, nos tacos que os cupins consumiram, nas portas que viraram pó. Memórias antes dos cupins subirem pelo prédio, antes do terreno ser prédio, memórias das mulheres que são DNA em mim, antes de mim. Memória de uma cadeira que se assentou no corredor. Dizem que a menina não queria dormir. A menina estava fora, mas não tinha nascido. Nasceu de um movimento contínuo, embalado, constante, contração, expulsão. A menina nasceu de uma cadeira que balança. A menina nasceu menina, não menino. O menino viria depois, mas não viveu, não saiu vivo da barriga. O menino carregaria o nome do pai e do avô, não eu. A menina também é Maria, irmã de Maria, filha de Lilian, neta de Maria. A avó que também era Maria era Maria José, cuspida no mundo no dia do santo. 19 de março de 1919. Era a Zezé, a Dedé da menina. A Dedé aparece nos sonhos da menina Maria em muitas noites. Ela dá voltas perto do mar, as duas no silêncio que é interrompido com a imagem de uma baleia que salta-voa em direção ao céu, joga água. Sai do fundo das águas e banha tudo de amor, de contrastes, de dificuldades. A menina olha a Dedé e sente que suas tristezas são diferentes. Ela não cobre mais a cabeça quando dorme. Ela saiu do fundo. A Dedé ainda ronca e faz a menina Maria rir com suas K7s que gravam a Dedé roncar. A mãe estava sempre aflita com o que a Dedé dizia. Era uma mãe que defendia a filha da avó? A Dedé não era bolinho, tinha língua afiada. Fazia gemada até ficar branquinha. Tinha um dedo pronto para expressar seus nãos, tinha uma gargalhada de humor e maldade, escondia comida embaixo da cama. A menina ria. Eu me recordo das mãos da Dedé. O giro da gemada, o dedo em não na ponta do nosso nariz, segurando o cigarro, segurando as minhas mãos. Eu me recordo dos olhos da Dedé, tristes, desconfiados, doloridos, olhos alegres olhando o meu Gui pela primeira vez. Olhos de olhar o tempo que passou ao admirar-comparar as costas de nossas mãos. Quando falo no corredor eu falo da minha irmã, da minha avó, da minha mãe. Quando eu vou ao corredor eu me recordo do meu pai que ficou doente e pesou menos de 40 quilos. Meu pai não morreu, mas parecia lógico que morresse. A menina olha o pai chegando em casa, roupas brancas, vindo do hospital e no bolso o tilintar de moedas. O maço de cigarros, isqueiro. Todo mundo fumava, a menina logo que conseguiu, roubou um cigarro da mãe e fumou também. No banheiro, achando que ninguém estava vendo. A mãe via o pai doente, o pai definhando, fumava seus cigarros de forma tão resolutiva, a menina resolveu ajudar a fumar para aquele tempo passar. As duas fumaram tanto que o tempo passou. O tempo correu uns 500 maços ou bem mais.