Deixei um bilhete colado na calçada. Voltei para o apartando e foi difícil meditar. Quem envia um bilhete quer uma resposta? Quer deixar um recado? Qual a expectativa? A experiência de esperar alguém.
A árvore continua lá. A janela também. Qual a expectativa das duas? Sou janela? Sou árvore? Qual a minha natureza?
Sento e olho um bilhete largado, colado na calçada. Questiono:
Ficou muito pequeno? Melhor colar no poste? Colar na árvore?
Talvez.
Pensei em deixar diversos bilhetes, diversas perspectivas. Sou o alvo?
Os bilhetes são para mim?
Quais existências ganham voz?
Sim, o bilhete está pequeno e deslocado do olhar de quem passa.
O que é olhar deslocado?
Pensamentos comuns...
Eu não tenho o dia inteiro, leiam meu bilhete!
Pessoas com celular na fronte.
Hoje é quarta, muitos carrinhos de feira. Lembro que fui a feira com a Dedé.
Estou sentada de frente para a árvore, vendo pessoas que passam.
Sim, o bilhete é para mim e para uma mulher que leu.
Se não fosse o bilhete eu não estaria aqui, lendo o movimento da avenida.
Vou buscar o bilhete.
Por hoje ele é meu e daquela mulher.
Escrevendo após a manhã no apartamento.
*****************************************
Sobre o vídeo
Gravei por quase duas horas. Somente uma mulher parou para ler. O gari varreu a calçada mas não varreu o bilhete. Um cachorro cheirou o bilhete. Carrinhos de feira. Vi pessoas na avenida, caminhando devagar e rápido. Um casal, ele bem na frente. Precisava se apressar pois puxava o carrinho. Se andasse devagar ficaria sem impulso. Vi naquele casal que somos sobreviventes. Sobreviventes desse ano e meio pandêmico. Como a árvore que sobreviveu a transformação na avenida, a construção do corredor de ônibus. Ela sobreviveu a violência da cidade que cresce. Eu vi tudo da janela. A manhã acabou e decidi que precisava pegar o bilhete. Vento bateu e o bilhete virou. Ninguém mais leria. Não na quarta.
*****************************************
da janela vejo
sobreviventes
sobrevidentes
subvidentes
*****************************************
árvore eu
eu árvore
dupla testemunha.
******************************************
quem,
ao longo de 49 anos,
viu quem?
******************************************
Quero reescrever tudo que vivi. Recontar, rejuntar, como memória.