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17 Jun
48. Bilhete na Avenida

Deixei um bilhete colado na calçada. Voltei para o apartando e foi difícil meditar. Quem envia um bilhete quer uma resposta? Quer deixar um recado? Qual a expectativa? A experiência de esperar alguém.

A árvore continua lá. A janela também. Qual a expectativa das duas? Sou janela? Sou árvore? Qual a minha natureza? 


Sento e olho um bilhete largado, colado na calçada. Questiono:

Ficou muito pequeno? Melhor colar no poste? Colar na árvore? 

Talvez.

Pensei em deixar diversos bilhetes, diversas perspectivas. Sou o alvo?

Os bilhetes são para mim?

Quais existências ganham voz?

Sim, o bilhete está pequeno e deslocado do olhar de quem passa.

O que é olhar deslocado?

Pensamentos comuns... 

Eu não tenho o dia inteiro, leiam meu bilhete!

Pessoas com celular na fronte.

Hoje é quarta, muitos carrinhos de feira. Lembro que fui a feira com a Dedé.

Estou sentada de frente para a árvore, vendo pessoas que passam.

Sim, o bilhete é para mim e para uma mulher que leu.

Se não fosse o bilhete eu não estaria aqui, lendo o movimento da avenida.

Vou buscar o bilhete.

Por hoje ele é meu e daquela mulher.

Escrevendo após a manhã no apartamento.

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Sobre o vídeo

Gravei por quase duas horas. Somente uma mulher parou para ler. O gari varreu a calçada mas não varreu o bilhete. Um cachorro cheirou o bilhete. Carrinhos de feira. Vi pessoas na avenida, caminhando devagar e rápido. Um casal, ele bem na frente. Precisava se apressar pois puxava o carrinho. Se andasse devagar ficaria sem impulso. Vi naquele casal que somos sobreviventes. Sobreviventes desse ano e meio pandêmico. Como a árvore que sobreviveu a transformação na avenida, a construção do corredor de ônibus. Ela sobreviveu a violência da cidade que cresce. Eu vi tudo da janela. A manhã acabou e decidi que precisava pegar o bilhete. Vento bateu e o bilhete virou. Ninguém mais leria. Não na quarta.

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da janela vejo

sobreviventes

sobrevidentes

subvidentes

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árvore eu

eu árvore

dupla testemunha.

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quem,

ao longo de 49 anos,

viu quem?

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Quero reescrever tudo que vivi. Recontar, rejuntar, como memória.

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