Tanto A Arte Cavalheiresca do Arqueiro Zen (Eugen Herrigel), quanto Linha do Horizonte - por uma poética do ato criador (Edith Derdik) me colocaram de frente com a indefinição da palavra algo. Gostei das reflexões que desembocam no pensar do ato de criação.
Em Herrigel, na conversa com o mestre arqueiro, após o mestre ter atingido o alvo no escuro, ele diz "sei que o mérito desse tiro não me pertence: algo atirou e algo acertou. Incline-mo-nos diante da nossa meta, como se estivéssemos diante do Buda." (p. 83).
Aqui eu penso no que é atravessar o corredor. De qual maneira me colocar ali para algo acontecer? Deixar de lado as expectativas, intenções e desejos. Como me despir a esse ponto? Estar com os sons do ambiente, sons de fora das janelas e os meus sem saber início ou fim? Vibrações de frequências, somente isso.
Num processo de criação onde se investiga a memória da própria artista-pesquisadora, o que é relevante? O processo, o tempo, a confiança dirão. Ou não dirão. De qual forma não gerar tensão e não deixar de relaxar?
Aqui tento me aproximar dos conceitos do Zen. No Caminho do Canto a Andrea Drigo fala para que eu saia da frente, para eu cantar sem me colocar na frente, me liberando de mim mesma. A ideia é oferecer o corpo às frequências, como passagem, sem intenção, sem o desejo de cantar. Percebo que muitas vezes eu estava tomada por medos e expectativas. Com o treino, vamos limpando esse campo, dando mais espaço ao cantar verdadeiro. Muitas vezes, tratamos o cantar com mais pensamento filosófico do que vocalizes.
Quando aconteceu o tiro, o mestre se aproximou e disse "algo acaba de atirar" e continuou "o mérito desse tiro não lhe pertence, pois o senhor permanecia esquecido de si mesmo e toda intenção, no estado de tensão máxima: o disparo caiu, tal qual uma fruta madura. Agora continue praticando como se nada tivesse acontecido." (Herrigel, p. 74 e 75).
No livro de Derdy, dei de encontro com o capítulo algo indefinido. Ela diz:
A palavra algo nos remete instantaneamente às sensações indefinidas e paradoxalmente presentes: algo é algo vago, nebuloso, informe. Algo é pronome indefinido que pode ser alguma ou qualquer coisa, anunciando a atualidade de algo por vir, evocando a ausência do que pode se dar como presença: acontecimentos em todos os instantes, em qualquer direção. (p. 31).
No processo de criação vai se abrindo o que pode ser, deixando aberto, sem uma forma definidora, cristalizadora. Sinto o algo como um espaço de possibilidades. Mas é preciso se colocar nesse território nebuloso e movediço, atemporal.
Derdyk nos resgata do medo da falta total de forma quando nos apresenta:
A melhor tradução que encontrei para explicitar a passagem de um estado de indefinição, indeterminação e invisibilidade para um estado de solidez e concretude das formas feitas pelas mãos do espírito humano é a manifestação do desejo de ver uma paisagem, mesmo sem ainda estar fisicamente nela. (p. 34)
Caminhar. Transitar pelo corredor de memórias e deixar que ele conte suas histórias. Ser corpo de passagem. São mais de 70 dias focando atenção no apartamento, mais de 40 dias postando reflexões, impressões, sentimentos no blog. As duas leituras de hoje me colocam no lugar do processo, as perguntas sem necessidade de respostas, as buscas sem busca. Olhando para o medo de uma expressão exagerada do ego, me acolho e finalizo com trecho de outro capítulo de Derdyk: "O texto, pontuado na primeira pessoa do singular, exalta um modo de produção de um eu ou alavanca um outro eu de todos nós." (p. 36).
DERDYK, Edith. Linha de horizonte - por uma poética do ato criador. 2ª ed. São Paulo: Ed. Intermeios, 2012.
HERRINGEL, Eugen. A arte cavalheiresca do arqueiro zen. 31ª ed São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix, 1984.