17 de maio de 2021
Cheguei no apartamento depois de quarenta anos. Entrei, a porta estava aberta. Parecia um apartamento largado, anos depois de um pós-mudança, caixas espalhadas, objetos esquecidos, coisas que não devem fazer falta, ficaram lá, jogados Coisas presas no passado. Quem sou eu nesse passado?
Sinto o pó compacto grudado ao chão, colado num piso que não me recordo. Não era de madeira? Taco? Não sei se a memória me trai ou se os anos trouxeram mudanças. E o vitrô da cozinha, a estrutura de ferro, vidro basculante?
No corredor, uma papeleira. Vejo cartas escritas para minha irmã. Com a minha letra? Não vejo a Bu desde mil novecentos e oitenta e? Por que eu escreveria para ela? Quem escreveu essas cartas? Não sinto em mim a intimidade daquelas palavras.
No quarto da minha avó, vejo coisas que não se parecem com ela. O quarto da Bu parece pequeno. Quarto dos meus pais, móveis desmontados e encostados na parede. Onde será que eles vivem? Será que ainda vivem?
- Tem alguém aí?
Saio do quarto procurando a voz. Reparo a marca de pegadas no chão frio do corredor. Vejo uma mulher, do outro lado perto da janela da sala. Ela olha na minha direção, mas não me vê. Vou me aproximando e reparo que ela poderia ser uma pele descolada de mim. Sigo seus movimentos, lentos. Sinto um frio violento no peito. Me afasto. Ela parece em casa. De quem é aquela vida tão confortável no apartamento? Alguém que arruma tudo como se nunca tivesse saído dali? Que parte da história eu perdi?
- Tem alguém aí?
- Oi?
Ela também não me ouve.
Eu tinha 9 anos quando fui roubada da minha história. Colocaram alguém no meu lugar?