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03 Jan
155. Sons das gavetas

Fechei o apartamento no dia 30 de dezembro de 2021 e só voltei hoje, 3 de janeiro de 2022. Precisei descansar dos sons ruidosos que as gavetas vazias fazem. Um deslizar-desencaixar-deslizar-reencaixar, às vezes num som fácil, noutros que emperram. Fiquei com os sons em meus ouvidos todos esses dias. Como se fosse um jogo, tipo Tetris, mas de gavetas amontoadas. Quantos pontos eu fiz? Fiquei ouvindo o movimento de ir e voltar e colocar as gavetas no corredor. Ouvi os sons do passado ecoando em cada pedaço vazio de cada gaveta, de cada armário sem gavetas. Você está ouvindo? Tem chovido bastante esses dias, é possível ouvir no vídeo que deixo aqui, deixa eu contar quantas...


Olhe essas gavetas. Você deve estar assistindo o ruído de umas 30 delas. Mas se colocar os ouvidos ao fundo, até o outro lado do corredor, o lado que está de costas para o vídeo, conseguimos contar mais de 70. Algumas não saíram do lugar. Estavam com muitas coisas dentro, cheiravam papel velho, guardado. Vou pegá-las numa outra vez, só elas, se der vontade. Sei que dia 30, depois de contemplar as gavetas vazias eu chorei muito.

Cumpri o Programa Performativo:

Deixar as gavetas no corredor por 3 dias. 

Acostumar-me com os sons do vazio, do nada. 

Acostumar-me com o que passou e foi só um movimento que fez a memória disparar e chegar em lugares que não poderia supor. 

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Ou poderia? 

Chorei de tudo que não sei. 

Chorei pelos objetos que passaram pelas gavetas, chorei de alguma saudade. 

Depois chorei por ter saído um dia de casa. Seria melhor ter ficado aqui? Esse dia mudou todos os outros. Tudo muda em certas decisões que tomamos, decisões que precisam ser tomadas. Não é sempre assim? E pensando no tempo, se aquele dia que saí de casa não tivesse existido, quem eu seria? Eu sei que dia 30 de dezembro de 2021 eu vi que eu alguém que queria ter ficado. Não falo de arrependimento, isso parece bobagem, não seria importante hoje. É que eu senti saudade da Maria que não partiu da casa dos pais. Senti saudades da Maria que vivia com os pais e só fazia faculdade. Eu poderia ter ficado e seria uma Maria que não conheço. Gosto das Marias que eu não conheço. Pensei nessa memória, a memória “e se” que fazemos de tempos em tempos. Resolvi escrever e gravar enquanto escrevo. Vou pensar em como fazer uma narração, mesmo com o vídeo em pé. Tem som de chuva no apartamento. Tem chovido bastante como eu já disse. Voltei aqui e vou guardar as gavetas no lugar, cada um no seu espaço, correndo encaixada, leve.

Voltei para fotografar as gavetas.

Voltei para colocar as gavetas no lugar.

Voltei para meditar deitada, antes.

Ler o programa performativo antes de começar.

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Programa Performativo

Colocar as gavetas no lugar.

Reparar no fluxo da respiração.

Só guardar, com calma.

Ou não.

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