Escrever este post foi o mesmo que abri um portal. Toquei uma pontinha do assunto. Comecei falando do cantar-tocar a canção Grávida e finalizei ao encontrar a foto ao lado. Voz e Parir ainda são, para nós mulheres, mais do que palavras, são universos a se desbravar. Foi isso que senti ao terminar de escrever, por isso escrevi esta introdução.
Em outro post eu comentei sobre a canção Grávida da Marina Lima. Separei letra e cifras e passei a tocar e cantar, estudando voz-violão. Depois de voltas e mais voltas praticando (tocando e cantando), por dias, ininterruptamente, automatizei a sequencia de acordes, podendo desligar a mente do que estava tocando e desliguei também algumas vezes do significado das palavras. Fiquei no observar das vibrações, no deixar a música passar por mim.
Isso ainda é como um mistério, como deixar "algo tocar-cantar", permanecendo as vozes voz-violão distante do ego. Sempre que toco ou canto com alguma expectativa, o canto não se revela. É como no tiro com o arco, livre de esforço e intenção. Quando acontece de fato, é o encontro que o mestre destacou para Herringel. "O mérito desse tiro não lhe pertence, pois o senhor permanecia esquecido de si mesmo e de toda intenção, no estado de tensão máxima: o disparo caiu." (p. 75).
Voltando para a canção. Independentemente de se acho ou não, se atingi o alvo ou não, o que estou refletindo é sobre o que percebo enquanto canto. Informações passam pela mente, de se sobrou arroz para o jantar até uma memória afetiva que faz a voz embargar. O tocar-cantar-tocar-cantar-tocar-cantar é necessário para limpar esse campo de informações cotidianas que a mente produz. Mas durante a "limpeza" dores, pressupostos, medos, preconceitos, aparecem. Não estou falando de aliviar, estou problematizando mesmo, olhando para as questões e transformar, criar sobre elas. Desse processo, perguntas nascem:
Por que meu dedo esbarra sempre na mesma nota? Estou vivendo a canção ou "interpretando um sentimento"? Por que estou com medo desse intervalo? De que medo se trata? Quero aceitação ou sinto medo do fracasso? O que é sucesso/fracasso?
Listei algumas das perguntas que já ouvi ao longo dos anos estudando música. Hoje elas parecem um pouco mais complexas. Algumas vezes eu canto e recebo uma resposta de uma pergunta não formulada*. No caso da canção Grávida, estou me perguntando sobre o salto de uma nota grave para uma nota aguda bem na hora que cantamos a palavra parir. É que parir me parece uma nota grave, no ventre. Por outro lado, as notas agudas sempre estão apoiadas no ventre. É que parir parece uma palavra que pode soltar ou embargar a voz. Sou capaz de cantar a música inteira sem prestar atenção nas palavras, mas quando chega a palavra parir, sou tomada pelo significado. Alguns momentos a voz não vai. Outros, sinto a voz de toda a criação do mundo.
Na verdade, a reflexão foi (e está sendo) imensa. Tudo isso pra dizer que para parir é preciso primeiro gestar. Para chegar nisso tudo leva tempo. E uma simples canção que a gente ouve na rádio-adolescência pode ecoar tempos-e-tempos-e-espaços fundos de dentro.
Na foto estou com meu filho Guilherme no colo. Estávamos no corredor. Isso se comprova pois na ponta superior esquerda da foto, é possível ver o poster do Esher. Ago/1992
* HERRINGEL, Eugen. A arte cavalheiresca do arqueiro zen. 31ª ed São Paulo: Editora Pensamento-Cultrix, 1984.
** me lembrei do trecho do livro As Existências Mínimas de David Lapoujade, p. 78: Experimentar é tentar responder da melhor maneira possível a perguntas constantemente não formuladas. Somente ao responder é que saberemos qual era a pergunta feita.