Quando decidi escrever sobre o meu processo de pesquisa, assumi a ideia de escrita diária. Criei assim a primeira regra. As postagens são livres. Posso escrever, anexar foto ou vídeo, criar link para uma música que ouvi durante o dia. Qualquer coisa que interferiu, colaborou, somou ou afetou a pesquisa. Aquilo que também me afeta como artista-pesquisadora. Tenho que postar no mínimo uma pequena lembrança sobre o processo, me colocando todos os dias em contato, nos poros, na pele.
Eu me lembro de diversas oficinas de escrita literária que já fiz. Nas oficinas da Noemi Jaffe, por exemplo, exercitei muitas vezes essas limitações. Ela propõe exercícios de restrições, de desgaste de palavras, perda de sentidos. Algumas vezes abri mão de uma letra, do uso de adjetivos, combinação de palavras achadas aleatoriamente no dicionário. É como um jogo. Perrec, por exemplo, escreveu o romance O Sumiço sem o uso da letra E. No francês, a letra E é a vogal mais usada, como a letra A no português. Perrec, Calvino, Borges e outros fizeram parte do OULIPO, grupo de escritores que usavam diversas restrições para escrever. O livro Cidades Invisíveis foi escrito se baseando em jogo de repetições e também num padrão matemático.
Ainda sobre as restrições, me recordo de uma aula da Noemi. Anotei:
A “incorporação do acaso, o contato com o erro, o erro que revela o que se passa pela cabeça, observar o “erro”, aceitação do não saber, compreender que a escrita nos escreve, perder a vontade de acertar; aceitar o silêncio, o vazio, o deserto, a pausa, deixar vazios, deixar que o leitor conviva com a dúvida, coragem de escrever um livro que não vai fisgar o leitor, não se preocupar com o que está sendo dito; não querer dizer nada além da palavra, dela mesma, despojar a palavra de tudo que ela tem, reconhecer – conhecer novamente, limpar a palavra das cargas artificiais que ela carrega, recuperar o sentido de inauguração das palavras; escrita aos pedaços, os tempos que se misturam, sentido da poética do fragmento, briga e brincadeira com a linearidade, quebra com começo, meio e fim, com antes durante e depois; tornar-se, outrar-se, tornar-se outro, não falar de si, nem ser eu o tempo todo ser eu, se despojar de si, se tornar aquilo que a gente escreve, fingir que a gente é a gente, literatura libera a mentira; escrever feio, ruim, desejo de escrever bonito é um desastre, escrita errada, torta, esbarrar, gaguejar a escrita.”
Cecília Almeida Salles observa que "limites internos e externos à obra oferecem residência à liberdade do artista. No entanto, essas limitações revelam-se, muitas vezes, como propulsoras da criação. O artista é incitado a vender os limites estabelecidos por ele mesmo ou por fatores externos, como data de entrega, orçamento ou delimitação de espaço" (Salles, 2011).
Encontramos o que Noemi propõe na leitura de inúmeros textos que encontramos em nossas bibliotecas. Diversos artistas contam que chegaram a resultados inesperados depois de estabelecerem jogos ou criarem regras e limitações. Eu tenho me inspirado bastante da escrita de Julio Cortázar e seus textos de aulas, cartas, entrevistas onde ele conta sobre seu processo de criação. Quando lemos esses textos, conseguimos ver que a vida dele parecia o tempo todo dentro de um jogo. Quando ele descreve como escreveu Manuscrito Encontrado Num Bolso podemos ver com ele o jogo de observação e toda a geometria de troca de olhares dentro de um vagão de Metrô. Ele também era um apreciador do acaso, parecia sempre pronto para coletar uma imagem da vida ordinária e transformar em fantástico. No caso de O Jogo da Amarelinha, ele nos propõe um tabuleiro de leitura. Mas cada um escolhe de que forma quer ler. Neste caso, quem cria a sua regra é o leitor.
Gosto da seguinte fala: Sempre escrevi sem saber muito bem por que o faço, movido um pouco pelo acaso, por uma série de coincidências: as coisas me chegam como um pássaro que pode entrar pela janela. Ele comenta também sobre o incômodo que isso gera em algumas pessoas. Há pessoas que quando se deslocam um pouco, ficam inquietas e sentem vertigens, não gostam nem um pouco da coisa. Preferem que dois e dois sejam sempre quatro e todo movimento, todo deslocamento produz nelas uma certa angústia. (CORTÁZAR, p. 17).
Quando comecei a escrever este texto, não imaginei que escreveria o que escrevi. Eu tinha simplesmente que cumprir uma regra, escrever algo no blog. Minha regra, minha limitação e meu voo em liberdade!
SALLES, Cecília Almeida. Gesto Inacabado. 5ª ed. São Paulo: Intermeios, 2011.
CORTÁZAR, Julio. Aulas de Literatura – Berkeley, 1980. 1ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.